Deu branco
4 de março de 2013
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A Vida Sem Memória
Conheça os diferentes tipos de
amnésia, as dificuldades de uma vida sem lembranças e de que maneira a memória
pode ser cuidada por Mariana Sgarioni.
O narrador, introspectivo, mergulha um bolinho dentro de uma
xícara de chá. Nesse momento, sente um aroma e um sabor que trazem as
lembranças das manhãs de domingo de sua infância. "E toda minha vida
passada saiu naquele momento, daquela xícara de chá", escreveu Marcel
Proust em sua mais famosa obra, Em Busca do Tempo Perdido.
A memória é assim mesmo: uma incrível biblioteca, com
fileiras e fileiras de arquivos, que podem ser acessados imediatamente com base
em um estímulo qualquer, como um som, um cheiro, um gosto, um toque. E nesses
arquivos, formados por 100 bilhões de neurônios, sempre há espaço para
novidades, como novas pessoas, ou até um número de telefone que somos capazes
de lembrar - ou esquecer - num piscar de olhos.
O problema é que nosso maravilhoso sistema de arquivos pode
ficar "lotado" ou simplesmente desaparecer. "O aspecto mais
notável da memória é o esquecimento", afirma James McGaugh, professor de
neurobiologia da Universidade da Califórnia. Nós não guardamos a maior parte
dos fatos que vivenciamos, dos livros que lemos, das imagens que vemos. Mesmo
da nossa infância, quando fazemos mais descobertas, esquecemos quase todas as
coisas.
Até aí, normal. A formação e a evocação da memória mobilizam
e ocupam muitas células, e é necessário liberar um espaço de vez em quando. Na
verdade, é importante esquecer as coisas para que a cabeça não vire um depósito
de lixo - ora inútil, ora traumático. Nada melhor do que se livrar de nossos
sofrimentos. O problema é perder o controle do esquecimento. Esse fenômeno,
conhecido como amnésia, é uma das questões mais intrigantes da medicina.
Na cabeça
Para entender como a memória se apaga, é preciso lembrar
antes como ela se forma. O processo é bastante complexo - trata-se de um
fenômeno biológico e psicológico, que envolve uma aliança de diferentes
sistemas cerebrais que funcionam em conjunto.
Não se sabem ao certo todas as várias partes envolvidas, mas
os indícios são de que ele seja coordenado pelo hipocampo - responsável pela
formação das memórias - e pela amígdala - associada às memórias emocionais.
Tudo é ativado por sinapses cerebrais, que liberam determinadas substâncias
químicas (neurotransmissores), dependendo do tipo de memória que é evocado no
momento. Existem 3 tipos básicos: memória ultrarrápida (retida por alguns
segundos, como um número de telefone), a de curto prazo e a de longo prazo.
A amnésia acontece quando esse sistema entra em pane - por
exemplo, por doenças neurodegenerativas, como o mal de Alzheimer, infecções e
derrames, pancadas na cabeça, traumas psicológicos, alcoolismo e uso de drogas.
Isso é diferente de uma simples falha de memória, que ocorre
o tempo todo devido à redução do número de sinapses cerebrais e de neurônios.
Se essa redução acelerar, aí sim podemos falar em amnésia - que pode valer para
informações novas (a amnésia anterógrada) ou para as antigas (amnésia
retrógrada).
Apesar de não existir um tratamento específico da amnésia, é
possível recuperar pelo menos parte da memória, dependendo da extensão e da gravidade
da lesão cerebral, com exercícios como a exposição dos pacientes a estímulos
novos ou a fragmentos das memórias a serem evocadas, terapia ocupacional e, em
alguns casos, medicamentos.
"Pesquisadores estão investigando diversos
neurotransmissores envolvidos na formação da memória, que pode um dia levar a
novos tratamentos. Mas a complexidade dos processos cerebrais envolvidos torna
improvável que um só medicamento resolva todos os problemas de memória",
afirma Larry Squire, professor de psiquiatria da Universidade da Califórnia, em
San Diego.
Mas o mais difícil mesmo é recuperar a capacidade de guardar
novas informações - a amnésia anterógrada. Para isso, especialistas sugerem que
o melhor tratamento é a prevenção. E aí valem as medidas clássicas, como não
fumar, não beber, praticar exercícios físicos, manter uma dieta equilibrada e,
principalmente, botar a cabeça para funcionar.
"O melhor exercício é a leitura porque abrange todas as
formas de memória: a memória visual, verbal, motora, a memória de curta duração
e de longa duração, a memória de imagens", afirma o neurocientista Ivan
Izquierdo. "A pessoa lê ‘árvore’ e movimenta as cordas vocais de acordo
com o som da palavra. Num instante, também, passam por sua cabeça todas as
árvores que é capaz de lembrar. Lê ‘árvores secas’ e se lembra de um
poema." Segundo Izquierdo, a memória é a expressão mais acabada de que a
função faz o órgão. Ela funciona melhor quanto mais se utiliza. Tanto que até a
doença de Alzheimer é menos grave nas pessoas com cultura elevada. Quanto mais
sinapses, menor o prejuízo.
Nossa memória está diretamente ligada à nossa história, ao
que somos - daí a importância de cuidar bem dela. Para o pensador italiano
Norberto Bobbio, "nós somos aquilo do que nos lembramos". Izquierdo
acrescenta: "Somos também aquilo que escolhemos esquecer".
Os tipos de
memória...
Processual - Armazena o modo de fazer as coisas - por exemplo, como dar
laço no cadarço.
Visual - Registra imagens como rostos e lugares. Assim, você pode
desenhar um elefante sem que ele esteja diante de você.
Episódica - Guarda acontecimentos da sua vida - desde o que você comeu
de café da manhã até o seu primeiro beijo.
Topocinética - Grava a posição e o movimento do corpo no espaço. Graças a
ela, você consegue caminhar automaticamente até a sua casa.
Semântica - Guarda palavras, raciocínios e o sentido das coisas.
...e de amnésia
Síndrome de Korsakoff - É um tipo grave de amnésia, decorrente do alcoolismo. Seu
portador não consegue reter novos acontecimentos.
Amnésia traumática - Quem sofre trauma no crânio pode esquecer o que ocorreu logo
antes e depois do acidente. Quanto maior for o trauma, mais prolongada será a
amnésia.
Amnésia global - Não se retêm informações novas nem antigas. Ocorre em
demências, traumas muito graves e intoxicações por monóxido de carbono.
Amnésia global transitória - Dura apenas algumas horas, e a recuperação é quase total. A
causa não está ainda esclarecida.
Amnésia psicogênica - É temporária e ocorre devido a traumas psicológicos. Pode
ser tanto anterógrada como retrógrada. Raramente há a perda permanente de
trechos de sua vida.
Para saber mais
A Arte de Esquecer - Cérebro, Memória e Esquecimento
Ivan Izquierdo, Vieira & Lent, 2010.
Fonte: SuperInteressante
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